Resumo:
Este artigo tem por objetivo refletir como moda e publicidade constituem uma construção de gênero, conforme a define Teresa De Lauretis: "A construção de gênero ocorre através de várias tecnologias (como a mídia) e discursos institucionais com o poder de controlar o campo de significado social e assim, promover, implantar representações de gênero" . Sendo a moda uma instituição como a caracteriza Gilles Lipovetsky, e a propaganda, um meio de manipulação da comunicação simbólica é possível afirmar que a mesma tem o poder de controlar o que De Lauretis definiu acima como "campo de significado social". Para ilustrar o enunciado, delimitei um campo de análise específico, os anúncios do Mappin Stores publicados no jornal O Estado de S. Paulo entre 1919-1929. O trinômio moda, grande magazine e publicidade pode ser considerado difusor de um discurso comum a respeito da mulher, "vendendo" a idéia daquilo que Nancy Cott definiu como "mulher moderna".
Introdução:
Neste estudo procurarei ilustrar, a (re)construção da imagem da "mulher moderna" (1) paulistana pertencente à elite, publico alvo da loja de departamentos, a "cliente preferencial da casa", como afirmam Peirão e Alvim: "A preferência do Mappin pela consumidora do sexo feminino ficava patente (...), na configuração com que se apresentava a loja por ocasião de sua inauguração. Dos 11 departamentos em que se dividia inicialmente o estabelecimento 8 eram dedicados a mulher, direta ou indiretamente". (2)
Instalado no coração comercial da cidade - o "Triângulo" (3) - desde novembro de 1913 o Mappin Stores divulgava "reclames" diariamente no Jornal O Estado de S. Paulo, "o jornal da elite paulistana e portanto lido por um público que era exatamente o do Mappin" (4).
É possível observar logo no primeiro anúncio da loja (publicado na primeira página d'O Estado, no dia de sua inauguração-29/11/1913) o direcionamento do grande magazine para o público feminino, seu empenho em inserir-se na categoria que Alvim e Peirão chamaram de Palais de la Femme. O anúncio trazia a imagem de uma mulher - "uma figura em Art-nouveau, com longa túnica solta e a cintura ligeiramente marcada. As formas soltas do modelo no anúncio, insinuando o contorno do corpo, marcavam a opção da loja pela modernidade: era a nova mulher que surgia na Europa, enfim libertada do jugo dos espartilhos, que o Mappin privilegiava (...)". (5)
Em 1919, com a inauguração do novo prédio (6), a loja passa a anunciar e esporadicamente também nos jornais Folha da Manhã, A Fanfulla, e Al Madraçat entre outros, atendendo, nos dois últimos casos também à população de imigrantes. Era freqüente que ocupasse ainda as páginas das principais revistas da época, em especial as dirigidas ao público feminino como Cigarra, Fon-Fon, Revista Feminina e Vida Moderna. Outro veículo importante e freqüente das propagandas do Mappin eram os programas do Teatro São Pedro, reforçando a associação do nome Mappin aos eventos artísticos culturais da cidade.
Através dos anúncios do Mappin, será possível notar como a moda, juntamente com a publicidade, constituiu o discurso de desconstrução de gênero que, como coloca De Lauretis, proporciona uma des(re)construção da mulher da elite paulistana. A moda redefinirá seus contornos decompondo o X formado pelas roupas armadas com anquinhas ou crinolinas e moldadas por espartilhos que imputavam à mulher a imagem de "mãe-esposa", e que pela própria forma era completamente antagônica ao H formado pelo traje masculino, aproximando as formas femininas das masculinas através da decomposição do X em duas retas paralelas, dando forma a mulher que ficou conhecida como "garçonne". (7)
A publicidade por sua vez desconstruirá a mulher mãe-esposa, para criar a consumidora. Antes associada ao ócio do lar, ela agora ganha uma imagem dinâmica, associada à cidade através do comércio. É a mulher quem vai as compras e é a ela que a publicidade se dirige. A indústria publicitária coloca a mulher mais perto da modernidade, anuncia os novos modelos de roupas, móveis e eletrodomésticos indispensáveis à mulher moderna, dinâmica e sociável. Antes restrita ao lar, a consumidora ainda tem as tarefas de mãe e esposa, mas de forma "reformada". A feminilidade é portanto desconstruída, para ser reconstruída com nova embalagem. Na propaganda do Mappin será possível observar uma união dessas duas releituras (feitas respectivamente, a partir da moda e da publicidade) da feminilidade em voga nos aos 20.
1. Moda e representação: a velha mulher de roupa nova
A moda, segundo Gilles Lipovetsky, é um "instituição excepcional (...), uma realidade sócio-histórica característica do Ocidente e da própria modernidade" (8), apoiada basicamente em três atitudes: a negação do passado imemorial, a febre das novidades e a celebração do presente social, o vestuário é o domínio arquetípico desta instituição. A esfera do parecer, local da moda por excelência, evidenciaria umas das funções sociais desta "instituição", a distinção de gênero.
Para analisar como a moda, no período aqui enfocado, pode ser considerada uma tecnologia de gênero no sentido em que De Lauretis a define, é preciso que voltemos os olhos para algumas transformações ocorridas na produção de moda no século XIX. Até o início da segunda metade do século, "o alfaiate, a costureira, a comerciante de modas, jamais deixaram de trabalhar em ligação direta com o cliente", conforme conta Lipovetsky, Era senso comum que a cliente fizesse valer seu gosto e suas preferências orientando o trabalho dos profissionais de moda. (9)
Em 1858, Charles-Fréderic Worth, já costureiro renomado, cria a primeira Maison e apresenta, também pela primeira vez, modelos inéditos, preparados com antecedência e apresentados aos clientes em salões. Após a apresentação, os clientes poderiam escolher os modelos que lhes agradassem, a fim de que a Maison executasse o modelo escolhido na medida do cliente. Tais demonstrações, aconteciam a cada seis meses, levando a público as criações para o Outono-Inverno e Primavera-Verão, por modelos vivos, mulheres jovens na ocasião denominadas "sósias". Era o início da Alta Costura, das Maisons, do calendário de moda e dos desfiles apresentados por jovens mulheres. (10)
A inovação que mais nos interessa aqui é o novo status do costureiro. De mero empregado, prestador de serviço, ele passa à condição de criador ou, como prefere Lipovetsky, "de artista soberano", com plenos poderes para legislar livremente em matéria de gosto e elegância femininos. "A mulher tornou-se uma simples consumidora". (11) Nessa frase, Lipovetsky, me confirmou coisa de que eu já suspeitava: a contar de então, a moda no século XIX passa a ser sinônimo de feminilidade
Se a mulher passa a dispor de opções de vestimenta que são fruto do gosto do criador, é preciso pensar que mais do que nunca o vestuário é uma fabricação, um produto que carrega consigo significações, que constróem e reconstroem a cada estação, de forma mais ou menos radical, o corpo da mulher. Desta forma é possível afirmar que a imagem feminina é uma construção, uma representação do discurso vigente na sociedade, que o costureiro pode quebrar, assimilar, ou representar.
Vejamos dois exemplos importantes, Worth e Chanel. O primeiro ganhou destaque no auge da Era Vitoriana. Seus modelos reproduziam exatamente a moral vigente na época, com vestidos que escondiam o corpo através das golas altas, das mangas, das saias compridas e armadas ao mesmo tempo em que ainda mais marcavam o papel social da mulher, ressaltando ancas e seios, em meio aos quilos de seda, fitas, e babados. A mulher mãe-esposa era o resultado final dessa representação. E não somente: a mulher era também inacessível, privada da vida social e especialmente do contato físico através da vestimenta. Worth fez sucesso porque soube renovar em cima do mesmo tema, mudando cores, tecidos e rendas a cada estação. Criando o ciclo da Alta Costura, ele inovou onde a renovação parecia impossível. Suas criações no entanto reafirmavam a moral vigente e seus vestidos eram criados em cima dessas significações, nos modelos em forma de X, opondo visivelmente a mulher ao homem, que por estes tempos já usava um traje sóbrio, prático e funcional, o "duas peças" que lembrava um H (12).
No contexto da Primeira Guerra Mundial, a estilista Coco Chanel aproximaria o traje feminino do masculino, substituindo o X por um duas retas paralelas, lembrando o H ainda em voga, da silhueta masculina, como pude notar em minha monografia de gradução (13). Tal mudança pode ser justificada pela necessidade imposta de simplificação dos trajes, a partir de 1914, como conseqüência da necessidade da economia de tecidos e de maior praticidade nas roupas, pois, com os homens no front de batalha, a mulher precisava assumir as tarefas masculinas. (14) Coco Chanel apropriou-se das fardas masculinas e deu-lhes um corte mais delicado: substituiu as calças pelas saias e criou o tailleur para o dia e o vestido de corte reto e tecidos leves para noite, evidenciando a silhueta e ressaltando a associação beleza e corpo. (15)
Chanel introduziu ainda o uso dos cabelos curtos, o que, acrescido aos trajes de corte reto e da silhueta longilínea, tornaram-na a grande expressão da moda à la garçonne, que desconstruía a mãe-esposa, substituindo-a pela garçonne, uma mulher sociável, moderna e ativa e não necessariamente mãe-esposa. Era preciso criar uma "nova mulher" no momento em que esses papéis não podiam mais ser levados á risca, até por falta de atores masculinos.
Assim seria possível ponderar que se conforme ressalta De Lauretis, "a construção de gênero é tanto o produto quanto o processo de sua representação " (16), moda e a publicidade seriam parte criadora do "sistema de gênero", um "sistema de significações que relaciona sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais" (17). Moda e Publicidade seriam ainda criadores do que a mesma autora, com base no pensamento de Althusser denomina, "relações imaginárias", constituindo o gênero através de suas criações, representações e significações. (18)
Levando em consideração que, para De Lauretis, "o gênero tem a função que o define de constituir indivíduos concretos em homens e mulheres" (19) e, tal como afirmam diversos autores, a criação de moda é pensada bipolarmente, as peças do vestuário são classificadas antes mesmo de sua confecção como masculinas ou femininas (calças e camisas para os homens/ blusas e saias para as mulheres), seria possível afirmar que a moda se caracteriza como ideologia de gênero, constituindo vestuários em peças masculinas e femininas.
No entanto, tal bipolaridade se restringiria ao produto da moda, isto é, o vestuário. Através de uma análise mais aprofundada é possível afirmar que moda, enquanto conceito, é quase sinônimo de feminilidade. Exemplo disso são as palavras de Lipovetsky, que ao caracterizar a Alta Costura, em determinado momento exemplifica: "Ao costureiro propõe, a mulher (grifo nosso), dispõe", para dar a penas um exemplo de como os teóricos da moda referem-se a relação criador / consumidor (20).
O exemplo acima não é fato isolado, posto que no período aqui referido é sempre a mulher que deve visitar a loja de departamentos para tomar conhecimento dos novos modelos recém chegados de Paris. A cada semestre ela é chamada a conhecer as mudanças no traje. É ela também que deve ver as novidades em sedas, luvas e perfumaria. Os anúncios dedicados aos homens destacam sempre a qualidade e não a novidade.
Ocorre aqui oque Teresa De Lauretis chama de interpelação , ou o "processo pelo qual uma representação social é aceita e absorvida por uma pessoa, como sua própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imaginária." (21)
Um outro exemplo (mais próximo do fornecido por De Lauretis) seria a própria classificação do vestuário. O antagonismo vigente na década de 20 entre saias e calças, a idéia do traje bifurcado para homens e saias para mulher não são escolhas, mas representações. Assim seria possível dizer que não é a mulher que escolhe a saia, mas a "saia" que escolhe a mulher. Saia e mulher seriam o encontro do significante com o significado, o mesmo ocorrendo na relação calça/homens.
Se as mulheres na década de 20 estavam se apropriando de elementos do visual e do vestuário masculino, isto acaba por alterar a relação significante/significado. Transformam-se também as relações homem/mulher, borrando as fronteiras de gênero e esfumaçando os contorno. Gera-se assim uma nova imagem de feminilidade.
A moda pode assim através de sua força motriz (negar passado, celebrar momento e dignificar o novo), criar, apresentar como "real" a imagem de uma nova mulher, a mulher moderna que as roupas contornam. É possível pensar que a libertação da mulher do jugo dos espartilhos, por exemplo, foi menos um avanço em direção ao feminismo do que uma estratégia da moda. (22)
2. Mulher-mãe e dona de casa, agora em nova embalagem
Notamos acima como a moda ajudou a (re)criar a representação de feminilidade da década de 20. Agora veremos o papel da publicidade, na construção de gênero. Para tanto tomaremos como base teórica as idéias de Nancy Cott e como corpus de trabalho as propagandas do Mappin.
A imagem do consumidor criada pela Publicidade do Mappin é uma figura feminina, uma "mulher moderna" e culta que adora passear e fazer compras, sem abandonar as responsabilidades do lar. Para enfatizar a imagem mencionada acima, o Mappin investe muito mais nos anúncios de belos vestidos para a noite do que em blusinhas para o dia a dia. A mulher "moderna" é sedutora. Belas lingeries, tal como perfumes e produtos de beleza são destaques nos anúncios. Mas antes de tudo a mulher é pensada como consumidora.
E o que significa ser consumidora?
O consumo, segundo Nancy F. Cott seria antes de mais nada a uma característica da "mulher moderna"; é interessante como a autora citada começa a caracterizar a relação mulher/publicidade: "Os publicitários e os especialistas em técnicas de promoção referiam-se habitualmente ao consumidor como "ela"." (23) Consumidor torna-se sinônimo de mulher.
Percebendo que a confluência de uma série de fatores (mulher/cidade/grande magazine) potencializavam o poder de consumo da mulher, os publicitários aproveitaram para criar um discursos de "poder" imaginário, embalando - coloca Cott - a individualidade feminina e a modernidade sob forma de mercadoria. As antigas necessidades femininas são reunidas em pacotes modernos. (24)
É importante notar que, à época, novas técnicas gráficas e fotográficas possibilitaram à publicidade utilizar maiores recursos criativos e tornar mais atrativos os anúncios. O essencial, como observa Cott, é que as mensagens publicitárias endereçadas à mulher "vendiam não apenas mostruários de produtos, mas também imagens delas próprias" A "mulher moderna" era retratada como energética e sociável. (25)
É exatamente nesta última imagem que o Mappin mais investirá. A sua cliente é por excelência a mulher que passeia, se arruma, sai de casa para um simples passeio no Triângulo, com direito a parada num salão de chá, que se enfeita com as melhores criações parisienses para as noites de temporada do "Lyrico". O grande destaque era de fato o vestuário feminino, primeiramente o de passeio e festa, roupas brancas (roupa de baixo), elegantes trajes para dormir, e lingeries. Em seguido a esses produtos vinham as roupas para crianças e mocinhas, serviçais, homens, móveis, produtos de toucador.
Nas propagandas diárias e nos catálogos os vestidos de soireé aparecem em primeiro plano, há muito mais anúncios diários de vestidos e acessórios do que de geladeiras (estas aliás ocupam literalmente as últimas páginas dos catálogos!). A seção de "utensílios domésticos" só seria inaugurada depois de nove anos de funcionamento da loja, em 1922. Outra coisa que caracteriza a mulher sociável são os anúncios de móveis de áreas de recepção como tapetes, cortinas e abajures, que também ganham espaço sobre móveis para espaços mais íntimos da casa, como o quarto do casal ou das crianças.
Na visão de Nancy Cott, esta era uma forma amenizada de apresentar (refazer, reorganizar, acrescentaria eu) através da publicidade, "o estatuto doméstico tradicional das mulheres e os serviços heterossexuais, passavam a ser definidos - e mesmo agressivamente comercializados - em termos de escolha. Os anúncios estavam orientados para persuadir que o ato de comprar constituía "um campo de escolha de controlo no qual as mulheres podiam exercer a sua racionalidade e manifestar seus valores pessoais". (26)
No entanto o que temos, em verdade, é uma nova forma de discurso, uma reformulação de ideologia da mulher e de gênero; a mulher-mãe ganhara também o status de consumidora.
A transformação não foi imediata. Por muitos anos a imagem da mulher como criança adulta era a imperante, ainda que não nas palavras, mas claramente nos desenhos. Em meados da década de 20 a mulher vai ganhando novos traços; ainda não é sensual, mas não mais carrega consigo ares infantis. Seu tom agora é blasé. A sensualidade só chega na década de 30. Em 1927, uma sutil androginia impera, os cabelos são curtos, os pijamas aparecem, mas, ainda que as feições não sejam sensuais, as roupas o são e muito.
Outra característica importante dessa consumidora é a agilidade e o gosto pela novidade. Assim o Mappin explora mês a mês a venda de artigos diferentes: janeiro é mês dos impermeáveis e dos chapéus (denunciando o clima instável da cidade), fevereiro o destaque é para as fantasias de carnaval, março é mês da liquidação semestral, abril das roupas pretas adequadas à Semana Santa e da promoção de tapetes, e assim por diante (27). O Mappin não foge a regra que, Nancy Cott bem observa, era imperante na estratégia publicitária: a "criação de necessidades". (28)
É preciso ressaltar que moda e publicidade são apenas dois exemplos de posições, dentro da existência social que - como enfatiza De Lauretis - atribuem uma posição à mulher dentro do sistema sexo-gênero.
4.Uma loja, dois clientes...
Enquanto a mulher das elites paulistana pára diante da vitrine, visita o salão de chá e passeia por todas as seções, o homem vai direto ao que lhe interessa, a seção de alfaiataria; ali o Mappin Stores oferece aos seus clientes "o melhor sortimento de casemiras inglezas do Brazil - e - garante perfeição do corte e acabamento", tudo isso com o preço "mais módico possível", diz o anúncio de 1919.
Se as principais peças do vestuário feminino mudam a cada estação, o homem que busca um traje para a estação Lírica deve se preocupar apenas em inovar o colarinho, a camisa e as meias. "Uma casaca pode ser impecável mas a distinção do seu aspecto de pende de uma camisa correcta e de um colarinho elegante. Nós temos os últimos modelos de colarinho "Ajax" para casaca." A loja anuncia ainda que tem um sortimento de camisas de peito liso ou com pregas, pelo preço excepcional de 30$ cada, além de outros produtos periféricos, mostrados nos anúncios sempre com o preço ao lado. No final o distinto senhor é informado que caso necessite de um casaca, o Mappin oferece os "últimos figurinos" a preços os mais baratos possíveis. Exceto o colarinho e a casaca, nenhum dos outros 3 produtos do reclame são associados à novidade, mas todos trazem o preço.
Outra coisa que chama a atenção é que, com exceção de peças íntimas como o "soutien gorge", as roupas femininas aparecem sempre sobre o corpo de um manequim. Com os homens essa regra nem sempre era seguida: não são poucas as vezes que peças do vestuário masculino parecem como que expostas num balcão, como podemos observar no anúncio de camisas de 1918. Os preços voltam a aparecer, o cliente é informado que a loja possui "um completo sortimento de roupas brancas importadas dos melhores fabricantes francezes". No mesmo anúncio, é possível saber que a seção de alfaiataria só trabalha com casemiras de pura lã inglesa, e que as encomendas neste setor são executadas com rapidez e perfeição. Além disso, as camisas mostradas no anúncio são feitas "com tecidos de optima qualidade" e "cortadas por um processo que permite a maior liberdade dos movimentos offerecendo portanto o máximo conforto". Aos clientes algumas vezes são reservados anúncios discretos, apresentando apenas um peça, como uma raquete de tênis, ou uma gravata. A sobriedade está presente até na configuração dos anúncios.
Economia e distinção aparecem como os únicos objetivos em comum de homens e mulheres que compram no Mappin. É o que a propaganda faz crer, pois enquanto os homens buscam qualidade, praticidade e rapidez, a mulher tem tempo de parar em frente à vitrine e admirar todo tipo de artigo, buscando sempre a novidade e a moda, como é possível notar no anúncio de 1919, informando sobre uma grande exposição de inverno; essa oferece uma série de novas mercadorias que vão de "um fino sortimento de vestidos modelos de Pariz - grande variedades de elegantes chapéus em veludo de cores - novo e explendido sortimento de pelles legitimas - graciosos manteaux e roupas para crianças - incomparável "stock" de tecidos de lãn - un rico sortimento de veludo chiffon em mais de vinte côres modernas -peignoirs e roupas de baixo a valores especiais - uma variedade de novos modelos em blusas - e muitas outras interessantes novidades".
Qualidade não é prioridade para a mulher, que está mais interessada nos modelos recentes, na elegância e na moda chegados de Paris e expostos na sobreloja que, por ocasião da exposição, se transforma no recanto chic da loja, "um verdadeiro ambiente pariziense", onde poderiam ser encontrados vestidos com lantejoulas e lamês - "usados cada vez com maior freqüência informa o Mappin".
As mulheres também são convidadas com freqüência a passar uma tarde agradável no salão de chá, ou trazer os filhos pra brincar na gruta polar (em tempos de Natal), fazer compras para seus filhos e cuidar da aparência no salão de beleza, visitar a liquidação, conhecer o novo sortimento de luvas, móveis ou cortinas. Os eletrodomésticos raramente são anunciados e artigos como fogões e geladeiras estão quase restritos aos catálogos, pois a mulher que vai a cidade prefere ver "lindas toalettes de lingerie que em todos os seus detalhes mostram oque vai ser o chic do verão deste ano".
Podemos concluir que a mulher construída pelas propagandas do Mappin é afoita por novidades e adora conhecer novas vitrines, ir ás compras e consumir seja lá oque for. Ela é a consumidora por excelência de que fala Nancy Cott. Num momento em que os homens eram ocupados com o trabalho, com a administração de seus negócios, as mulheres transformam-se em consumidoras em potencial, especialmente nas grandes cidades, onde era necessário oferecer a mulher uma nova "função", um novo atributo, uma nova imagem. A mulher ociosa, corpulenta e entregue exclusivamente às tarefas do lar não combinava com a cidade de São Paulo, símbolo da modernidade brasileira.
A Revolução Tecnológica, a passagem do século, o pós-Primeira-Guerra, junto aos arranha céus que não paravam de crescer, celebravam a modernidade - coloca Nicolau Sevcenko (29) para esse autor, moderno, naquele contexto, era nada menos que o novo absoluto, o futuro, a ação, o movimento. Numa espécie de complemento às idéias do autor, é possível afirmar que a mulher, com suas roupas e seus espaços criados pelo consumo, era um símbolo emergente dessa modernidade, ainda que isso fosse mais uma representação (no sentido teatral) do que realidade, tal como a própria modernidade paulistana, na qual arranha céus conviviam com a Mata Atlântica ao fundo. A mulher não escapava à regra, vestindo o figurino moderno, mais cuidando da família e do marido.
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Notas
(1) A mulher americana dos anos vinte, avançada como as tecnologias, os produtos e os meio de comunicação, explica Nancy Cott, tal modelo predominante durante a década de 20, entraria em decadência nos anos 30, especialmente durante a Depressão e a Grande Guerra. Cf : COTT, Nancy F. . "A mulher moderna: O estilo americano dos anos vinte". in: História das mulheres no Ocidente. O século XX. Porto/ São Paulo. Edições Afrontamentos/ EBRADIL, 1996. p. 95.
(2) ALVIM, Zuleika / PEIRÃO, Solange. Op. cit. p. 40.
(3) O "Triângulo" era formado pelas ruas São Bento, Direita e 15 de Novembro, tinha, o ápice truncado pelo largo do Rosário. Cf. OCTÁVIO, Laura Rodrigo. Elos de uma corrente, seguidos de outros elos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 237.
(4) O Mappin, ou Mappin Stores (Brazil) Ltd. como se chamava na época, foi inaugurado em São Paulo no dia 19 de novembro de 1913; ficaria conhecido popularmente pelo nome de Casa Mappin. Em 1939, passaria a se chamar Casa Anglo- Brasileira, retornando ao nome original em 1950. Cf: ALVIM, Zuleika / PEIRÃO, Solange. Mappin. Setenta Anos. São Paulo: Ex Librix. 1985. P. 66.
(5) "Conceito importado da Europa, como o próprio conceito de loja de departamentos." Cf. ALVIM\PEIRÃO, op. cit. p.40.
(6) O Mappin muda de endereço, mas continua no Triângulo; antes instalado na rua Direita, a loja agora está numa extremidade do polígono, a junção das ruas São Bento e Direita, em frente à Praça do Patriarca.
(7) SOUZA, Gilda de Mello: O Espírito das Roupas , a moda no século XIX. São Paulo: Comp. das Letras, 1987. p. 59.
(8) Por modernidade o autor entende: o período iniciado no final da Idade Média, quando nasce a "ordem própria da moda, a moda como sistema, com suas metamorfoses incessantes, seus movimentos bruscos, suas extravagâncias" - A mesma lógica, aplicada à moda, sobreviveria na concepção de Lipovetsky até os dias atuais. LIPOVESTSKY, Gilles. O Império do Efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Comp. das Letras, 1989. p. 23.
(9) LIPOVESTSKY, Gilles. O Império do Efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Comp. das Letras, 1989. p. 91
(10) Charles -Frédérich Worth (1825-1895), inglês, foi para Paris em 1845, tornando-se empregado da Maison Gagelin, onde vendia mantos e xales. Cinco anos depois abriu uma loja de costura. Em 1858, estabeleceu se próprio ateliê. Rapidamente caiu na predileção da imperatriz Eugênia, sendo a influência e o apoio dela muito propícios ao sucesso de Worth. Em 1860 aboliu a crinolina e elevou a saia na parte de trás, formando também uma cauda e, em 1865, elevou a cintura e criou a anquinha. Com a queda do império, cinco anos depois, Worth fechou sua Maison e a reabriu um ano mais tarde, continuando a ser o maior costureiro parisiense, vestindo atrizes como Sarah Bernhardt e Eleonora Duse e tendo como clientes a nobreza européia e a sociedade internacional. Cf: O'HARA, Georgina. Enciclopédia da Moda. De 1840 à década de 80. São Paulo, Companhia das letras, 1992. pp. 289-290.
(11) LIPOVESTSKY, Gilles. p. 92.
(12) Sobre o antagonismo entre vestuário feminino expressos através de silhuetas que lembrava um X em oposição ao H , ver: SOUZA, Gilda de Mello e. op. Cit. p. 59.
(13) BONADIO, Maria Claudia. Moda! Um perigo para as boas moças. Estudo sobre a imagem feminina (1910-1930). Campinas: Unicamp, 1996. (mimeo).
(14) ROBERTS, Mary Louise. " 'This Civilizacion No Longer Has Sexes' : La Garçonne and Cultural Crisis in France After World War I"; in: Gender/History, vol 4, number 1, Spring 1992. Oxford. p. 53.
(15) Gabrielle Bonheur Chanel (1873-1971), estilista francesa, introduziu na alta moda feminina, também, uso das duas peças e das bijuterias, adaptou os suéteres masculinos. Em 1920, lançou calças largas para mulheres, baseadas nas bocas de sino dos marinheiros, seguidas dois anos depois por pijamas para a praia. Cf. O'HARA, Georgina. Enciclopédia da Moda. De 1840 à década de 80, São Paulo: Comp. das letras, 1992 (Apoio Cultural- Cedro Cachoeira). p. 74.
(16) DE LAURETIS, Teresa. p. 212.
(17) Idem, p. 211
(18) Idem, p. 212
(19) Idem, p. 213
(20) Anne Hollander, autora de "O Sexo e as Roupas", reforça a associação moda/feminilidade, no Capítulo "Oque é moda"; a autora afirma : "As roupas masculinas claramente não fazem parte da "Moda", já que a "Moda Masculina" é reconhecida como um subconjunto, e mal atinge a fama e a ressonância atribuídas á "Moda". Cf: HOLLANDER, Anne. O Sexo e as roupas: A evolução do traje moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p. 22-23. Gilda de Mello e Souza no seu estudo "O Espírito da Roupas" enfatiza a associação já referida em diversos momentos, como no parágrafo inicial da seção "A cultura feminina" : "Para o grupo feminino, porém, a moda continua sendo, no século XIX a grande arma na luta entre os sexos e na afirmação do indivíduo dentro do grupo." - filiando, assim, moda a feminilidade. SOUZA, Gilda de Mello. O Espírito das roupas: A moda no século dezenove. Companhia das Letras: São Paulo, 1987.
(21) DE LAURETIS, Teresa. DE LAURETIS, Teresa. "A Tecnologia do Gênero". In: Tendências e Impasses: O Feminismo como crítica da Cultura. Org.: Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 219.
(22) No caso dos espartilhos, há evidências de que havia profissionais da área preocupados com o conforto feminino. Herminine Cadolle - proprietária da famosa marca de lingeries Cadolle - elaborou para a Exposição Universal de 1899 um espartilho com laços, que sustentava os seios, mas não comprimia o ventre, permitindo maior conforto. Outro exemplo é Caresse Crosby - como ficou conhecida Mary Phelp Jacoby, uma americana cansada dos apertos dos espartilhos que junto a uma costureira francesa, criou em 1913 o primeiro modelo de sutiã. O novo produto fez sucesso entre suas amigas, levando-a a patentear a marca. Infelizmente ela perderia dinheiro com o negócio, vendendo a patente para a Warner Bross. Cf: FONTANEL, Béatrice. Sutiãs e Espartilhos: Uma história de sedução. Rio de Janeiro: Salamandra, 1998. p. 77/89.
(23) COTT, Nancy F. ."A mulher moderna: O estilo americano dos anos vinte". in: História das mulheres no Ocidente. O século XX. Porto/ São Paulo. Edições Afrontamentos/ EBRADIL, 1996. p.109.
(24) COTT, Nancy F.. Op. Cit. p. 110.
(25) COTT, Nancy F.. Op. Cit. p.110.
(26) Idem.
(27) Tais anotações são referentes a uma análise das propagandas do Mappin dos anos de 1920-21. É possível que em outros anos itens como promoção de cortinas seja substituído por grande estoque de luvas ou enorme sortimento em sedas. Mas as chamadas ligadas às datas são constantes em todo período aqui enfocado.
(28) COTT, Nancy F.. Op. Cit. p. 109.
(29) SEVCENKO, Nicolau: Orfeu Extático na Metrópole, São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Comp. das Letras, 1992. p.228