Texto publicado por Adilson José de Almeida em Anais do Museu Paulista; história e cultura material. São Paulo, v.3, p.273-6, 1995
Este livro é a publicação da tese defendida pela A. em 1951. Ele conta com um apêndice, no qual a A. discorre sobre o rapé, um produto muito utilizado no século XIX, e duas peças de indumentária feminina, o xale e o colete (espartilho); e mais uma sequência de 36 fotos, cujas legendas identificam tipos característicos da época: fazendeiros, militares, estudantes de direito, jovens senhoras, etc. Ressaltem-se também os cuidados de edição no intuito de atingir um amplo público e contemplar um tipo de obra na qual visualizar os objetos em questão, no caso a indumentária, é fundamental: assim, o texto é inteiramente acompanhado por imagens e estas por comentários em destaque ao pé das páginas, que não só ilustram mas explanam ou sintetizam todos os assuntos discutidos.
O estudo desenvolve-se em torno de dois assuntos principais. A diferenciação sexual acentuada no século XIX, plenamente observável no vestuário de homens e mulheres e oportunidade para a A. explicar a "cultura feminina", relacionando o investimento na indumentária para fins de sedução a práticas sociais como a exclusão da mulher do mundo do trabalho (confinando-a ao trabalho doméstico) e realização pessoal apenas por intermédio do casamento; e o engate da moda com as questões de mobilidade social, processo intensificado com as transformações sociais daquele século. O instigante capítulo final sobre a "festa" como fato social, constituindo-se na "grande fantasia" da aproximação - entre homens e mulheres e entre classes sociais - recolhe toda a análise anterior, encaminhando o estudo da indumentária como uma excelente estratégia de análise das sociedades democráticas.
Seu trabalho é significativo ainda hoje, em primeiro lugar porque constitui-se numa das poucas pesquisas acadêmicas brasileiras sobre moda e vestuário publicadas e, em segundo lugar, porque desenvolve entre nós os termos do debate iniciado ainda no século XIX, promovido por sociólogos e antropólogos em torno da moda, cuja definição conceitual deve buscar localizá-la num ponto intermediário entre os costumes e as manias.
O costume definiria, então, aqueles comportamentos que tendem à permanência e que, portanto, ligando-se preferencialmente à tradição, impõem-se coercitivamente ao indivíduo (conforme Gabriel Tarde, Steinmetz, Sapir); a moda caracteriza-se também como um fenônemo coletivo que age coercitivamente sobre os indivíduos, mas suas mudanças são mais freqüentes e nela se introduz o problema das escolhas pessoais, posto que possuindo uma dimensão estética implica a questão do gosto (uma modulação individual sujeita à aprovação coletiva); as manias - fads, crazes e hobbies - são variações ocorridas no interior de pequenos grupos e estando mais sujeitas ao gosto, exercem sua força de imposição de maneira muito localizada e fluida, podendo mesmo perdê-la completamente pois a "extravagância" suscita frequentemente a desaprovação coletiva - não podem, como a moda, caracterizar uma sociedade e nem mesmo uma classe social.
Nesta perspectiva a moda é um fenônemo significativo para análise social por estar referida à organização da vida social e não só às especificidades da vida individual. Suas características são compreensíveis considerando-se seu papel mediador nas relações entre grupos e classes sociais e deve-se, enfim, apreendê-la em sua eficácia coercitiva. Por isso, podemos entender porque neste estudo o surgimento da moda está vinculado a dois fatores: desejo de competição e hábito da imitação (que ganharam força na Renascença com as novas condições postas pelo desenvolvimento do espaço urbano e da vida nas cortes: a proximidade espacial entre pessoas). O significado da moda não é apreendido nos problemas relativos à origem da inovação mas, preferencialmente, no movimento de sua difusão.
O esquema da moda funciona livremente no século XIX. Na constituição das sociedades industriais e democráticas, com o fim das barreiras políticas e jurídicas à ascensão social, a competição instaura-se plenamente e a moda pode realizar-se em toda a sua potencialidade, acelerando a velocidade de suas variações e a sucessão dos estilos. Mas se a competição entre grupos e classes sociais é o fator que impulsiona a moda, os comentários sobre a Renascença revelam que no núcleo da competição estaria não tanto o interesse em distinguir-se mas a preocupação em imitar. À competição se lançam os grupos em ascensão social que passam a copiar as inovações surgidas naqueles de maior domínio e prestígio na hierarquia social.
Este enfoque parece levar a uma concepção restrita, por exemplo, do significado das leis suntuárias (que prescreviam o tipo de indumentária permitida a cada categoria social). Estas leis são tomadas pela autora como tentativas infrutíferas de uma sociedade de ordens em manter-se como tal, simples formalidades que sobrevivem, apesar da expansão de práticas sociais que lhe são contrárias. O problema a ser compreendido seria o abrandamento destas leis, concebidas para restringir os grupos sociais participantes do jogo da moda mas tornadas ineficazes conforme a riqueza, ao longo do tempo, supera a condição de nascimento como critério de prestígio na hierarquia. Na verdade, seria preciso compreender a permanência destes dispositivos legais, aplicados com maior ou menor eficácia - situações que uma pesquisa histórica necessitaria esclarecer - por um período tão longo (pelo menos do século XIV, época de seu intenso reforço, até o século XVIII), mesmo sob formas de organização social tão diferenciadas.
O "gosto" aparece, então, como obstáculo à compreensão da moda. Steinmetz estabelece como procedimento fundamental na metodologia de análise a observação empírica do exercício da moda (devemos examiná-la com "nossos próprios olhos"). A A. procura afastar-se da proposta e aponta como dificuldade a restrição do pesquisador à observação do gosto, que não poderia nos revelar as linhas essenciais do desenvolvimento da moda mas apenas fornecer-nos as justificativas dos agentes e não suas motivações mais profundas para a adoção de uma dada inovação. Distinção pertinente entre processo sociais e a consciência que se pode ter deles, mas que descarta o exame dos elementos físicos - cores, matérias-primas, formas - e minimiza a análise da dimensão estética das roupas e as mediações entre individual e coletivo implicadas na moda (embora explicitamente consideradas).
A A. enfatiza a complexidade do fenônemo e as dificuldades para seu estudo: "serve à estrutura social, acentuando a divisão em classe; reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação como membro do grupo); exprime idéias e sentimentos, pois é uma linguagem que se traduz em termos artísticos. Ora, esta expressão artística de uma linguagem social ou psicológica - o aspecto menos explorado da moda - talvez seja uma de suas faces mais apaixonantes" (p.29). Contudo, mais adiante afirma: "No entanto, se cada vez que o estilo varia a moda cai sob o domínio da arte, o que explica a mudança?... Esta pergunta quem a responde, a nosso ver, não é mais a Estética e sim a Sociologia" (p.51). Faz-se aqui uma opção mas estabelecendo uma dicotomia entre análise estética e abordagem sociológica. Uma formulação que deixa escapar o problema da materialidade mesma de um objeto - as roupas - na formação, desenvolvimento e mudança de relações sociais.
Não se trata, como podemos verificar nos trechos citados, da desconsideração de qualquer significado social do vestuário mas sim de conceber a subordinação da estética da indumentária às transformações ocorridas no contexto social (relações políticas, econômicas, estratificação de classes). No entanto, as análises desenvolvidas no livro superam estes enunciados gerais e apontam para outras direções de pesquisa. No exame do pronunciado antagonismo entre os papéis masculino e feminino estabelecido no século XIX, é nas formas, nas cores e nos tecidos que podemos verificar tal distinção, materialmente assegurada, e percebermos como uma dada forma de organização social (as sociedades democráticas) conformam as dimensões físicas da indumentária. No exame das diferenciações de classe há passagens muito sugestivas, como aquelas referentes às modificações nas saias entre os anos 1850-1880. Constatamos que a saia-balão e a crinolina atingem seu volume máximo, tolhendo a capacidade de movimento de suas usuárias, num momento em que a tecnologia do transporte - é a época dos trens - ganha um forte impulso; em seguida, abandonada a preocupação com os volumes, surgem as caudas, longas que têm o mesmo efeito de não facilitar a movimentação; e mesmo uma mudança mas significativa como o aparecimento, nos anos de 1880, das saias justas, com inúmeros adereços, que dificultam até mesmo o ato de sentar.
Estas constatações, ligadas às considerações de Veblen sobre o consumo conspícuo (p.125), levaram a A. à seguinte conclusão: "Como se vê, a moda tanto pode refletir as transformações sociais como opor-se a elas através de inúmeros subterfúgios, todas as vezes que há perigo de uma aproximação excessiva entre as classes e os sexos" (p.129). As transformações sociais seriam a característica dominante das sociedades democráticas do século XIX, e esta "oposição" que a roupa pode fazer ao seu próprio "tempo" deixa entrever outras dimensões sociais do vestuário. Aqui ele se apresenta como um verdadeiro dispositivo material que conforma os movimentos físicos do indivíduo, mobilizando o corpo na efetivação "concreta" das relações sociais. Quase nos deparamos nestas considerações acima com o problema dos suportes sensíveis que as relações sociais necessitam para realizar-se.
Uma revisão minuciosa deste trabalho poderia demonstrar que a dificuldade que impediu a formulação do problema encontra-se no campo mesmo de opções em que se colocou a A., discutidas a propósito da questão da roupa de moda considerada como criação artística (capítulo 2). Afirma, então, sua preferência pelo método da "ligação das coisas simultâneas" defendido por Taine, em detrimento da concepção de "espírito do tempo" que se encontra em James Laver ou G. Heard. Ambas as posições, no entanto, supõem constatar um paralelismo tanto no âmbito das artes (pintura, escultura, arquitetura, etc.), quanto no âmbito dos objetos (indumentária, objetos de interiores, etc.) muito duvidoso em alguns casos (G. Heard refere-se à predominância das formas cilíndricas no século XIX: a cartola é cilíndrica, o túnel e a chaminé também o são). A consequência de uma tal colocação é a preocupação com o elemento comum que estaria presente em todas as manifestações sociais e materiais de um determinado período, em detrimento do caminho mais frutífero de pensarmos as formas de articulação de atividades sociais diversas, ou de forma mais precisa, dos diferentes níveis da organização social (econômico, material, político, ideológico, imaginário).